Recentemente, a revista Pesquisa da Fapesp publicou uma longa e reveladora entrevista com um dos maiores e mais importantes pensadores, roteiristas e críticos de cinema do Brasil, Jean Claude Bernadet. Nascido na Bélgica, veio para São Paulo com 13 anos e, apesar de só ter iniciado suas atividades como cineclubista, roteirista e crítico - entrando, segundo ele "em contato com o Brasil e os problemas do país" -, bem mais tarde, não demorou para se transformar em referência quando o assunto envolve a sétima arte praticada em terra brasilis.
Nesta conversa, que por um acaso do destino tem tudo a ver com É Quase Verdade e os temas levantados pelo filme, Bernadet não poupa o cinema brasileiro: atira contra o uso constante da miséria como tema de documentários. "Ela nunca gera problema político porque gera um discurso do consenso, além de chamar a atenção para a piedade, a bondade e a lamentação da infelicidade."
Como o texto é muito longo, destacamos aqui três importantes perguntas e as respostas de Bernadet sobre o assunto, mas ao final um link leva à entrevista completa, que, como veremos, vale muito a pena. Enjoy.
Uma das explicações fáceis é a questão do subsídio. Não se tocam em alguns temas. Tive relações intensas com vários documentaristas, vi montagens, versões. Um deles me disse, certa vez, que os desastres ambientais da Petrobras são enormes. Sugeri então que ele fizesse um filme sobre isso. Ele me respondeu que, se o fizesse, o cinema brasileiro acabaria. Sabemos que a Petrobras é uma forte patrocinadora do cinema. Uma das questões que se coloca num certo nível de documentário é a horizontalidade. A horizontalidade da miséria nunca cria problema político, porque ela gera um discurso do consenso, além de chamar a atenção para a piedade, a bondade e a lamentação da infelicidade. Já sugeri várias vezes que a evolução do cinema devia se dar no sentido de uma verticalidade e que essa miséria tão abundantemente mostrada pelos documentários, se fosse inserida no sistema como um todo, as coisas poderiam mudar de significação e perspectiva. Acho que há uma grande despolitização da miséria. A miséria é um grande achado da classe média. É um discurso que não cria nenhum problema. Fica a ilusão de que se está abordando questões de miséria ou de sem-teto, que estamos fazendo alguma coisa. Mas não estamos fazendo nada.
Outra reclamação constante é sobre a pobreza dos roteiros.
A importância do roteiro provém muito da desimportância da produção. Como não se consegue produzir, você faz roteiro, refaz o roteiro, faz curso de roteiro, tem concurso de roteiro… Sem produção e sem toda uma máquina para produzir isso – inclusive a dramaturgia – não se tem nada. Não é que a dramaturgia não seja importante, ao contrário. Mas, se não estiver no quadro da produção, não resolve. É preciso ter em vista um conjunto imenso de parâmetros. De como filmar, ter o circuito de distribuição antes de filmar, o filme mirar o público certo etc. Precisamos criar um sistema de produção em que entra a dramaturgia. Sozinha ela não resolve. Pode-se fazer o mais fantástico filme, mas isso não o colocará necessariamente no Cinemark.
Hoje você está mais voltado para o chamado Cinema Marginal?
O meu gosto seria estar na produção e realização de filmes políticos. A única coisa que eu não gosto dessa expressão é o fato de ela vir marcada por um movimento dos anos 1960, que é o Cinema Marginal, tocado por grandes cineastas como Júlio Bressane ou Rogério Sganzerla, entre outros. Isso é muito ruim para as jovens gerações. Eles têm que se livrar dessas referências. Parece simples, mas não é: o peso dos anos 1960 nos ombros dos jovens cineastas, dos estudantes, essa referência eterna ao Cinema Novo, ao Cinema Marginal. O bandido da luz vermelha [1968] continua sendo um filme admirável, a atuação da Helena Ignez, em A mulher de todos [1969], é espantosa. A questão é como lidar com a tradição – se ela é opressiva, não estimula a criação.
http://revistapesquisa.fapesp.br/2014/10/09/jean-claude-bernardet-um-critico-contra-estetica-da-miseria/
Recently, Fapesp Research Magazine published a long and very revealing interview with one of the most important Brazilian film critics, scholars and screenwriters of all time, Jean Claude Bernadet. Born in Belgium, he came to São Paulo at 13 and despite having initiated his activities as a cinephile, screenwriter and movie critic only later - getting in touch according to himself "with Brazil and its problems" -, it didn´t take long for him to become a reference when it comes to the seventh art being made in terra brasilis.
In this conversation, which BTW has everything to do with our film It´s Almost True and the themes inserted in the movie, Bernadet is no good to Brazilian Cinema: he shoots against the constant use of poverty as a theme to documentaries. "Poverty never generates political problem simply because it generates a speech of consensus, besides calling attention to piety, devotion to goodness and lamentation of unhappiness."
Since the text is very long, we should highlight three of the most important questions and answers by Bernadet about this subject, but you can find the link to the whole text right down below and which you´ll see is really worth reading. Enjoy.
To what do you attribute the not-so-very-happy moment of Brazilian Cinema?
One of the easiest explanations is the question of subsidy. They don´t tackle some themes. I´ve had intense relationships with various documentarians, I´ve seen many versions of their work, many editing versions. One of them once told me that enviromental disasters by Petrobras are enourmous. I suggested to him to make a film about it. He answered me back saying that if he did, Brazilian Cinema would vanish. We know Petrobras is one strong sponsorship of cinema. One of the questions that at a certain level people attribute to documentaries is their horizontality. Poverty horizontality never creates political problems, because it generates a consesus speech, besides calling attention to piety, goodness and the lamentation of unhappiness.
I´ve already suggested many times that the evolution of cinema should be attached to a verticality and that this poverty so much shown by documentaries, if it was inserted in the system as a whole, things could change focus and meaning. I think there´s a great depolitization of poverty. Poverty is a great find of the middle class. It´s a speech that does not create any problem whatsoever. You get the illusion you´re talking about poverty matters or the homeless matter, that we´re doing something But we´re not doing anything.
Another complaint comes from the deficiency of screenplays.
The importance of the script comes from the not-so-importance of production per se. Since you can´t produce, you write a script, you rewrite the script, you attend a script course, there´s lots of script contests... Without a production system - including dramaturgy - you have nothing. It´s not that dramaturgy is not important, on the contrary. But if it´s not on the production board of the system it doesn´t mean anything. It´s necessary to have a whole bunch of parameters. Of how to shoot a picture, of having the distribution circuit before shooting the picture, of having the right target audience, etc. We need to create a production system that dramaturgy is inserted. Dramaturgy itself does not resolve the problems. You can make the most fantastic film, but that doesn´t necessarily mean it will open on Cinemark.
Are you leaned towards the Underground Cinema today?
My taste would be that of the production and making of political films. The only thing I don´t particularly like about this expression is that it comes attached to this 1960s movement, which is Underground Cinema, made by great filmmakers like Júlio Bressane and Rogério Sganzerla, among many others. This is very bad for new generations. They have to get rid of those references. It seems simple, but it isn´t: the weight of the 1960s on the shoulders of these young filmmakers, students, this eternal Cinema Novo reference, the Underground Cinema. The Red Light Bandit (1968) is a remarkable film, Helena Ignez´s acting in The Woman of All (1969) is awesome. The question is how to deal with tradition - if tradition is oppressive it does not stimulate creation.
http://revistapesquisa.fapesp.br/2014/10/09/jean-claude-bernardet-um-critico-contra-estetica-da-miseria/